A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em vigor desde setembro de 2020, representa um marco na regulação da privacidade e da proteção de dados no Brasil. Inspirada no Regulamento Europeu de Proteção de Dados (GDPR), a LGPD trouxe novas responsabilidades para empresas públicas e privadas no tratamento de dados pessoais, estabelecendo princípios de transparência, finalidade e segurança.
Ao mesmo tempo, a popularização da inteligência artificial (IA) – especialmente em soluções de big data, machine learning e automação jurídica – abriu espaço para novos desafios regulatórios. Surge a questão central: como compatibilizar o uso da IA com os princípios da LGPD?
Situação Atual da LGPD no Brasil
Desde sua promulgação, a LGPD vem ganhando força institucional e prática:
- Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD): Criada para regulamentar, fiscalizar e aplicar sanções, a ANPD consolidou-se como órgão essencial para a efetividade da lei. Hoje, já emitiu guias orientativos, sanções administrativas e conduz fiscalizações setoriais.
- Sanções e Multas: A partir de agosto de 2021, empresas passaram a estar sujeitas a multas de até 2% do faturamento, limitadas a R$ 50 milhões por infração, além de advertências e bloqueio de dados.
- Cultura da Proteção de Dados: Cada vez mais, empresas buscam implementar programas de governança de dados, políticas de privacidade e treinamentos internos, não apenas para evitar sanções, mas também para reforçar a confiança de clientes e parceiros.
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Inteligência Artificial e a LGPD: Onde Estão os Desafios?
A IA depende do tratamento massivo de dados para gerar previsões, análises e recomendações. Esse modelo de funcionamento pode entrar em conflito com os princípios da LGPD, especialmente em três pontos:
- Base Legal para Tratamento de Dados
- A LGPD exige que cada dado pessoal tratado tenha uma base legal (como consentimento, obrigação legal, execução de contrato etc.).
- Muitos sistemas de IA coletam dados em larga escala sem que o titular tenha consciência clara disso, gerando dúvidas sobre a legalidade desse tratamento.
- Transparência e Explicabilidade
- A lei assegura ao titular o direito à informação, ou seja, entender como e por que seus dados estão sendo utilizados.
- Porém, modelos de machine learning são frequentemente caixas-pretas, com decisões automatizadas difíceis de explicar até mesmo para os desenvolvedores.
- Decisões Automatizadas
- A LGPD garante ao cidadão o direito de solicitar revisão humana de decisões automatizadas que afetem seus interesses, como crédito, contratação de seguros ou até seleção em processos de recrutamento.
- Isso impõe às empresas a obrigação de combinar tecnologia com supervisão humana, reduzindo riscos de vieses e discriminações.
Exemplos Práticos: Como a IA se Relaciona com a LGPD
- Chatbots de Atendimento: Empresas que usam chatbots baseados em IA devem informar ao consumidor que suas interações estão sendo registradas e para qual finalidade.
- Análise de Risco em Crédito: Bancos utilizam IA para precificação e concessão de crédito. Pela LGPD, o consumidor pode pedir explicações sobre o critério utilizado, bem como solicitar revisão da decisão.
- Reconhecimento Facial: Ferramenta comum em segurança corporativa, mas altamente sensível. A coleta de dados biométricos só pode ocorrer com consentimento explícito ou outra base legal válida.
Caminhos de Conciliação: IA Compatível com a LGPD
Para que empresas usufruam do potencial da IA sem infringir a LGPD, algumas medidas são recomendadas:
- Privacy by Design: inserir a proteção de dados desde a concepção dos sistemas de IA.
- Minimização de Dados: coletar apenas o estritamente necessário para o funcionamento do algoritmo.
- Anonimização: sempre que possível, trabalhar com dados anonimizados ou pseudonimizados.
- Governança Algorítmica: adotar políticas de auditoria, revisão e monitoramento constante dos modelos de IA.
- Educação Corporativa: treinar equipes para lidar com aspectos legais, técnicos e éticos do uso da IA.
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Perguntas Frequentes (FAQ)
- A LGPD proíbe o uso de inteligência artificial?
Não. A LGPD não impede o uso de IA, mas exige que o tratamento de dados respeite princípios como finalidade, transparência e segurança.
- Posso usar IA para decisões automatizadas em minha empresa?
Sim, mas é necessário garantir ao titular dos dados o direito de revisão humana e explicação clara sobre os critérios adotados.
- Dados anonimizados estão sujeitos à LGPD?
Não, desde que a anonimização seja irreversível. Se houver possibilidade de reidentificação, a LGPD continua aplicável.
- Como a ANPD enxerga a IA?
A ANPD vem acompanhando o tema e deve lançar regulamentações específicas, inspiradas no debate europeu sobre o AI Act, voltado a classificar riscos e estabelecer critérios de conformidade.
Conclusão
A LGPD no Brasil já é uma realidade consolidada, mas sua aplicação frente às novas tecnologias, em especial a inteligência artificial, ainda está em evolução. O equilíbrio entre inovação e proteção de direitos fundamentais será o grande desafio da próxima década.
Mais do que cumprir uma obrigação legal, tratar dados pessoais de forma ética e responsável significa construir confiança e fortalecer relações de mercado. Nesse cenário, empresas que souberem alinhar IA e LGPD sairão na frente, unindo eficiência tecnológica e segurança jurídica.
Paulo Vinícius de Carvalho Soares é sócio e Data Protection Officer na LBCA, Mestre em Direito Civil pela PUC-SP, Especialista em Direito de Internet pela FGV.